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domingo, 28 de outubro de 2012

A vida daqueles que nunca esquecem


A vida daqueles que nunca esquecem

34 pessoas no mundo têm uma síndrome rara que as faz lembrar de quase todos os dias de suas vidas. Cientistas estudam o fenômeno, que pode abrir novos caminhos para impulsionar a memória

por Kayt Sukel, da New Scientist | Ilustrações: Luk Lima
Editora Globo
Aquele foi um e-mail que James McGaugh, pesquisador especializado em memória da Universidade da Califórnia, achou difícil de acreditar. A remetente, uma dona de casa de 34 anos, dizia lembrar-se dos eventos mais importantes de qualquer data desde seus 12 anos. “Tem quem diga que sou o calendário humano”, escreveu a norte-americana Jill Price. “Eu repasso toda minha vida dentro da minha cabeça, todos os dias. Isso está me deixando maluca!”

McGaugh convidou Jill para visitar seu laboratório, tendo em mãos um exemplar de 20th Century Day by Day, livro que lista eventos importantes do século 20 por ordem de data. Ele abriu páginas aleatórias e perguntou a ela o que havia acontecido em cada dia. “Não importa se era um acidente de avião, uma eleição, um astro de cinema fazendo algum absurdo, ela sempre acertava”, lembra. “Todas as vezes.”
Desde o encontro, em junho de 2000, o grupo de McGaugh estuda a mulher com supermemória. Os pesquisadores descobriram que ela pertence a um pequeno grupo de indivíduos que possuem habilidades semelhantes. Não são gênios autistas ou mestres de truques mnemônicos, mas pessoas que conseguem lembrar dos eventos mais importantes de praticamente todos os dias de suas vidas. Os cientistas buscam entender melhor suas habilidades e o modo como seus cérebros funcionam para realizar novas descobertas sobre a natureza da memória humana.

Trabalho de detetive Visitei o laboratório na Universidade da Califórnia para entender como vivem pessoas com habilidades tão estranhas e como os pesquisadores sentem-se trabalhando com elas. “Nunca canso de me surpreender”, diz a neurobióloga Aurora LePort, colega de McGaugh. “Alguns lembram de todos os dias.”
Após descrever o caso de Jill, a equipe de McGaugh criou uma rotina para diagnosticar a síndrome, batizada de Memória Autobiográfica Altamente Superior (HSAM na sigla em inglês) e confirmá-la usando os diários e álbuns de fotografias dos participantes, entrevistas com familiares e buscas na internet. Por exemplo, eles comparam a descrição do primeiro lar do entrevistado com imagens do Google Street View e o álbum de fotos da família.

Em 2007, a equipe de McGaugh publicou seus achados sobre Jill Price na revista científica Neurocase, concluindo que ela era o primeiro caso identificado de HSAM. Desde então, foram descobertos outros 33 indivíduos com dons semelhantes. Assim como Jill, suas memórias detalhadas remontam aos cerca de 10 anos de idade.

Em uma entrevista por telefone, perguntei a Jill Price como é ter essa habilidade. “Minha memória sempre dominou a minha vida”, ela explica. “É uma fonte de muitas felicidades, mas também um grande tormento. Lembrar todos os momentos incríveis é reconfortante. Mas você também lembra das coisas ruins.” Ela conta que seu marido morreu há alguns anos e a tristeza no outro lado da linha é clara.

De volta para o passado A atriz Marilu Henner, também portadora de HSAM, vê a síndrome sob uma perspectiva mais positiva. Famosa por seu papel no seriado americano Taxi nos anos 80, diz que suas habilidades foram extremamente úteis na carreira. “Sempre me perguntavam ‘como é que você consegue rir ou chorar tão fácil?’ Eu posso voltar a um momento emocionante, com todo o meu sentimento.”

Jill Price também diz que seu dom é útil no trabalho: ela é coordenadora de educação religiosa em uma sinagoga. “Lembro tudo que preciso saber sobre os alunos.” McGaugh diz que a maioria dos indivíduos com HSAM tem uma opinião positiva sobre seu talento. “Nunca ouvi nenhum dizer que gostaria de se livrar dessa habilidade. Se pergunto o que fazem quando têm uma lembrança ruim, eles dizem que pensam em algo de bom.”

Mas quanto, exatamente, os super-memoriados conseguem lembrar? Aurora deu início a um projeto de acompanhamento de longo prazo para descobrir se as memórias dessas pessoas vão desaparecendo com o tempo em comparação com as de pessoas comuns. Intrigada, eu me ofereci para participar do grupo controle durante esta reportagem.

Logo que chego a uma sala do laboratório, Aurora não perde tempo. “Conte tudo que aconteceu, todos os detalhes que você consegue lembrar sobre hoje. Você tem 2 minutos.” O limite de tempo é importante, diz Aurora; sem ele, os indivíduos podem passar bastante tempo rememorando. Eu não tenho certeza de por onde começar. “Bem, eu acordei no hotel e liguei para o meu filho no Texas…” Continuo a listar fatos triviais sobre o meu dia, como o enorme bufê de café da manhã e o trânsito a caminho do laboratório, antes de contar sobre minha reunião com os pesquisadores.

A seguir, repito o mesmo exercício para os últimos 6 dias, contando mais fatos cotidianos e também sobre uma briga com meu ex-marido e a formatura do meu filho no jardim de infância. Também me pedem que eu avalie o quanto cada dia foi único e emocional. Logo estou convencida de que tenho a vida mais chata do universo.

O próximo exercício é mais difícil. Aurora pergunta o que eu estava fazendo nas mesmas datas um ano antes. Tomando como ponto de referência um feriado prolongado, consigo lembrar de um churrasco de família e a triste ocasião de jogar fora um maiô que me caía bem. Mas quando ela me pergunta sobre a semana correspondente 10 anos atrás, fico perdida. Sei que estava morando em Atlanta e que havia começado a namorar o homem com quem me casaria e divorciaria, mas não lembro nada de específico.
Com indivíduos com HSAM, diz Aurora, a história é outra. Quando o entrevistador pede que lembrem de eventos de alguma data um mês antes, eles recordam pouco menos da metade dos detalhes lembrados ao serem perguntados sobre as memórias recentes. “Mas se você compara as informações que eles lembram um mês atrás com as de 10 anos atrás, são mais ou menos as mesmas.” Ou seja, tudo que conseguem lembrar após um mês continua vivo em suas mentes 10 anos depois.
Editora Globo
Ilustrações: Luk Lima
Emoção que fica Aurora é fascinada pelo que pode estar acontecendo no cérebro de pessoas com a síndrome nesse primeiro mês. Ela acha que os indivíduos com HSAM capturam os elementos fundamentais do dia e perdem alguns dos detalhes secundários. “É importante entender que eles também esquecem”, diz LePort. “Mas não tanto quanto eu e você.” Entender quais tipos de informações eles memorizam pode ajudar a explicar como conseguem lembrar de tanta coisa, dizem os pesquisadores.

Uma teoria sobre por que isso ocorre se concentra nas emoções. Pesquisas com animais e seres humanos demonstram que, se um evento é acompanhado por emoções fortes, seus detalhes podem ficar presos na memória. O processo envolve as amígdalas cerebelosas, pequenas estruturas de neurônios dentro do cérebro. McGaugh diz que os cérebros de indivíduos com HSAM podem processar excitação emocional de uma maneira diferenciada. “É possível que eles estejam operando em um nível tão alto de excitação que esses elementos adicionais acabam sugados pela memória. Mas nós não temos certeza.” A atriz Marilu Henner acredita nessa teoria. “Desde pequena, sempre tentei preencher cada dia com uma certa riqueza”, diz. “Especialmente porque ia lembrar de tudo, fosse o que fosse.”
Certamente as emoções também tiveram um papel nos testes de memória que fiz durante esta reportagem. Infelizmente, não pude continuar no grupo de controle de Aurora, pois a semana que recontei em minhas memórias diárias incluía um feriado prolongado, o que me daria uma vantagem injusta no processo. Mas, um mês depois, pedi a um amigo que me ajudasse a recriar a entrevista na minha sala e comparar os resultados com os dados da pesquisadora. Logo ficou óbvio que eu só conseguia lembrar poucos detalhes. O que lembro não é a rotina do dia a dia, mas os altos e baixos emocionais: a briga com meu ex, os sentimentos que acompanharam o período que meu filho saía do jardim de infância. O resto é mais difícil.

A teoria da excitação emocional ganhou força com um artigo recente de uma equipe da Universidade Vanderbilt em Nashville, nos EUA, o único outro grupo a ter publicado trabalhos sobre um indivíduo com HSAM. Uma ressonância magnética revelou que o voluntário examinado possui uma amígdala cerebelosa direita 20% maior do que o normal, além de maior conectividade com o hipocampo, área do cérebro relacionada à memória. “É possível que a amígdala expandida esteja alterando o processamento de informações de alguma forma, tornando-as mais relevantes e fáceis de lembrar”, diz o neurologista Brandon Ally, que liderou o projeto.

Mas essa pesquisa é contestada porque a equipe estudou apenas um indivíduo com HSAM, e essa pessoa era cega, o que pode explicar a anatomia cerebral incomum. O grupo comandado por McGaugh obteve ressonâncias dos cérebros de 11 indivíduos com HSAM e suas amígdalas cerebelosas tinham tamanhos normais. Ainda assim, McGaugh não rejeita a teoria da excitação emocional: as amígdalas podem ser incomuns de modos que não ficam visíveis em ressonâncias.

Os exames, no entanto, revelaram detalhes interessantes sobre outras áreas do cérebro. Primeiro, os 11 indivíduos com HSAM possuem lobos temporais maiores do que a média. Essas regiões armazenam as memórias de longo prazo, mas McGaugh lembra que não podemos pressupor que a anatomia é causa, não efeito. “Não sabemos se o modo como eles lembram muda o cérebro ou se as mudanças na estrutura cerebral resultam no modo como eles lembram”, diz. Os pesquisadores também encontraram diferenças num conjunto fibroso de neurônios cuja lesão está relacionada com prejuízos à memória autobiográfica.

O resultado mais inesperado é que áreas cerebrais envolvidas com o Transtorno Obsessivo-Compulsivo (TOC) também eram maiores do que a média. Entretanto, nenhum indivíduo com HSAM foi diagnosticado com TOC. Apesar disso, McGaugh afirma que todos demonstram comportamentos “de tipo obsessivo ou de tipo compulsivo”. “Coisas como medo de germes. Se as chaves caem no chão, eles precisam lavá-las antes de guardá-las de volta no bolso. Também observamos organização de tipo compulsivo, o que pode assumir muitas formas diferentes.” Jill Price se irrita com a ideia de ter TOC, mas concorda que é organizada. “Sou organizada na minha cabeça e organizada na minha vida”, conta. “Se você precisa de alguma coisa, não importa se foi 10 anos atrás, basta falar comigo.”

Aurora acredita que as tendências obsessivas dos indivíduos com HSAM podem ser importantes. “Talvez seja uma forma de ensaiar as lembranças no inconsciente.” Alguns estudos sugerem que atitudes como essa contribuem para a capacidade de armazenar memórias no longo prazo. Essa ideia, assim como a teoria da excitação emocional, continua a ser apenas uma hipótese. Por ora, as pesquisas não produziram uma maneira convincente de permitir que nós, pessoas com memórias normais, repliquem as capacidades de quem tem HSAM. O pesquisador McGaugh diz que a maioria das pessoas melhoraria seu desempenho caso se esforçasse mais. “Provavelmente poderíamos nos sair melhor, mas você nunca vai conseguir chegar no mesmo nível que esse pessoal.”

A pesquisa sobre os mecanismos por trás da memória superior está apenas começando. Jill Price, que originalmente procurou McGaugh porque queria entender melhor suas habilidades extraordinárias, tem esperança de que algum dia surgirá uma boa explicação. Mas ela sabe que vai precisar de paciência. “Faz 12 anos”, lembra. “E ainda estou esperando.”
Editora Globo

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